"A vida é como uma onda. Ou como uma dança, em que cada momento é único e tem de ser vivido com plenitude. O que é ruim passa e o que é bom também passa. Aceitar a impermanência da alegria e da tristeza e entender que não dá para segurar esse fluxo permite aproveitar melhor o que está aqui e agora.
Por encanto, o momento tornou-se perfeito, sublime: o encontro com a pessoa amada, a festa com os amigos, a descoberta de algo que trouxe grande felicidade. O desejo é que esses momentos não acabem nunca mais. Mas nem toda vontade do mundo, nem todo controle e força são capazes de prolongar ou manter indefinidamente qualquer coisa, por mais bela, positiva ou bem-intencionada que seja.
Surfista das praias do litoral norte de São Paulo, o paulista Renato Guiselini Gonçalves aprendeu esse vaivém da vida com as ondas do mar. “Observo com muita atenção o movimento delas, seu ritmo e constância antes de entrar na água. Elas têm um padrão, uma lógica no caos aparente que é o oceano. Tenho de saber que música elas tocam para, então, decidir como vou dançar”, avalia Renato. Essa sabedoria, ele aplica igualmente na vida. “Aprendi a usar o fluxo das ondas a meu favor. Não luto contra elas”, revela o surfista. As aventuras pelas praias com sua moto também ensinaram outras lições. “Viajantes são obrigados a se adaptar às circunstâncias e a tirar delas o melhor proveito – é gente maleável por natureza. Nunca carregam muito peso na mochila, pois a leveza facilita a liberdade de movimentos”, acredita Renato. Ser mais tolerante e paciente também ajuda, aconselha ele. “E a vida nada mais é do que uma viagem”, confirmam os versos do compositor americano Bob Dylan.
Lições da floresta
A natureza também inspirou o paulista Luís Fernando Rosado. Produtor de shows e eventos em São Paulo, abandonou tudo para se dedicar a uma pousada no meio da Mata Atlântica, na serra da Mantiqueira. Ele testemunha todos os dias a eterna renovação da natureza. “Se um ciclo não termina, não existe a possibilidade de algo novo começar. A eterna transformação garante a continuidade da vida. E as mudanças são ótimas oportunidades de crescimento e expansão”, aprendeu Luís.
O exemplo da renovação cíclica da natureza vem da floresta. “Numa zona desmatada e árida, nasce uma primeira camada de vegetação. Dizem os índios que esses vegetais vão se doar generosamente depois, morrendo e servindo como húmus para a formação da segunda camada de vegetação, que vai substituir quase inteiramente a primeira”, explica Luís. “Durante esse processo, mudam também as espécies de pássaros, insetos e animais”, diz ele. Isto é, se uma camada não morre, a outra não floresce.
Dentro de casa, a gerente administrativa paulista Márcia Bianco também observa essa constante transformação, tanto na alquimia de fazer ingredientes distintos virarem um bolo como na louça que cai e quebra. “Hoje de manhã, olhei para minha pulseira de contas de cristal. Pensei: se ela ficar debaixo das rodas de um carro, vira pó. Essa sensação constante de que se pode gostar das coisas enquanto elas estão perto, mas que não se deve sofrer quando elas mudam, me ensina a ver a vida com mais leveza e liberdade”, acredita Márcia.
Velha mania
Mesmo assim, insistimos em nos agarrar ao que é conhecido – parece mais fácil e confortável. Na verdade, só queremos garantir o que nos agrada, nos dá prazer e segurança. “Mas não existe nada no mundo que impeça o movimento contínuo da vida”, reconhece a psicóloga junguiana Sueli Scartezini, de São Paulo. Ela acompanha doentes terminais e sabe que essa vontade de “ajeitar as coisas a nossa maneira” pode estar presente até nos últimos momentos da existência. “Nos prendemos às pessoas, às circunstâncias, aos bens materiais e principalmente aos nossos ódios e aversões”, diz ela. Não enxergamos como a vida se manifesta. “O desejo de que as coisas permaneçam iguais acontece porque não nos reconhecemos como parte integrante da natureza. Deixamos de perceber os ciclos em que estamos inseridos e nos fixamos numa determinada situação, interna ou externa”, explica Suely.
O pior é que, quanto mais cola nesse esparadrapo, mais ele dói e custa para sair. “A vontade de que algo não mude pode se tornar obsessiva. Com o medo de perder o que temos, surgem tentativas de controle, baseadas na eterna ilusão de que vamos deter o fluxo dos acontecimentos”, diz a psicóloga.
Impermanência
Os budistas chamam de apego essa tendência ao grude. Segundo as palavras de Buda há mais de 2,5 mil anos, essa é a grande causa do sofrimento do mundo. E o apego machuca tanto porque não reconhecemos a impermanência da vida, isto é, não aceitamos que tudo muda e que nada permanece – inclusive nós mesmos. Sim, a morte e a doença nos obrigam a refletir sobre isso. “São temas tão importantes que estavam presentes no primeiro e no último pronunciamento de Buda, feito há milênios”, escreveu o canadense Glenn. H. Mullin, no livro Os Mistérios da Morte na Tradição Tibetana (ed. Kuarup).
A compreensão do conceito de impermanência também pode chegar por meio de algo alegre e vivo. Foi com esse espírito leve que 50 mil budistas cantaram Como uma Onda no Mar, de Lulu Santos e Nelson Motta, num encontro realizado em São Paulo para comemorar o nascimento de Buda. Rebatizada como Melô da Impermanência, a canção ganhou o coro de gente satisfeita com a vida, inclusive por saber muito bem que “nada do que foi será do mesmo jeito que já foi um dia/ Tudo passa, tudo sempre passará...”.
Bons Fluidos- ago/2002 - Texto: Liane Camargo de Almeida Alves
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